Análise | Obscula: quando o medo não é correr de um monstro, mas tropeçar em você mesmo no escuro
Existe uma diferença sutil — mas essencial — entre jogos de terror que te assustam e jogos que te perturbam. O primeiro te dá um sustinho e depois você ri.
O segundo te faz pensar demais, e quando você ri… é nervoso. Obscula, da Lunafrost Studio, é desse segundo tipo. Não grita com você. Sussurra.
E o pior: sussurra coisas que você meio que já pensava, mas evitava encarar.
Um espelho sujo em primeira pessoa
Você acorda num lugar que não reconhece. O mundo está desbotado, meio mofado, como se tivesse sido esquecido por Deus e depois relembrado com raiva. E você está sozinho. Mas não de um jeito “ah, que paz”. Não. Sozinho do tipo “acho que tem algo me observando, inclusive de dentro da minha própria cabeça”.
Obscula é um terror em primeira pessoa, desses que fazem você andar devagar por corredores apertados e com iluminação de banheiro de balada. Mas, diferente do que se esperaria de um clone de Outlast ou Amnesia, ele não está preocupado em fazer você correr. Está mais interessado em ver como você caminha. O que você observa. Onde você hesita.
E a resposta? Em todo lugar.
Terror psicológico com diploma de psicanálise (e um leve complexo de culpa)
A trama é simples, como toda boa armadilha emocional: você está procurando a verdade. Mas o jogo nunca diz exatamente o que isso significa. Aliás, toda vez que você acha que entendeu alguma coisa, ele muda a pergunta. O que você encontra são fragmentos de memórias, textos, estátuas que encaram, e sons — muitos sons — que parecem vir tanto de fora quanto de dentro da sua cabeça.
É como se Obscula tivesse nascido de um brainstorm entre Freud, H. P. Lovecraft e aquele seu amigo que lê Nietzsche e diz que “não acredita em felicidade, só em propósito”.
Atmosfera: o monstro é o silêncio
Nada te prepara pra ambientação sonora desse jogo. O som não quer apenas te ambientar — ele quer te afundar. São ruídos que lembram choro de criança, arranhões atrás da parede, vozes ao longe falando palavras que sua mente quase entende. E às vezes, pior: o silêncio absoluto.
Aliás, o silêncio aqui é o maior dos vilões. Porque ele deixa espaço. E nesse espaço, você coloca seus próprios medos. Medo de fracassar, de estar só, de ser um erro ambulante disfarçado de gente funcional. Não é à toa que em um trecho do jogo você entra numa sala sem nada… e sai tremendo.
Visual retrô com pós-modernidade suja
Graficamente, Obscula não quer ser bonito. Quer ser sincero. E sinceridade, como sabemos, não é Instagramável. O estilo é meio PS2 meets PSX, com aquela textura que parece ter sido retirada de um VHS amaldiçoado. Tudo é granulado, escuro, um pouco fora de foco — como um sonho ruim ou um flashback de infância.
As estruturas do cenário são desconexas, como se o lugar estivesse em colapso, ou tivesse sido montado por um arquiteto esquizofrênico com trauma de infância. Há salas que não fazem sentido, corredores que se repetem, portas que te levam pra lugares que você jura já ter visitado… mas algo mudou. E você também.
Gameplay: explorar como quem abre uma ferida antiga
Não espere armas, HUD bonitinho ou botão de pulo. Obscula quer que você explore, mas com respeito. Cada sala parece te perguntar: “Tem certeza que quer entrar?” — e o botão de interação parece pesar mais quando você está com medo.
O progresso é feito através da descoberta. Itens, pistas e mudanças no ambiente. Às vezes você pega um objeto e… algo muda. Às vezes, você só observa. E o jogo adora quando você observa demais. Porque tudo tem um significado. Nem sempre claro. Mas sempre desconfortável.
Comparações inevitáveis: entre Silent Hill e uma terapia cara
Lembra de Silent Hill 2? Aquele terror que não era sobre monstros, mas sobre culpa, luto e segredos que fedem? Obscula bebe dessa fonte. Mas ao invés de te dar uma história trágica pronta, ele te oferece só as perguntas. “O que você está fazendo aqui?” “Quem você era antes disso?” “Por que você está com medo?”
Também lembra Soma, aquele terror sci-fi existencial que te faz duvidar se você é mesmo humano ou só uma lembrança ambulante de alguém? Em Obscula, você é exatamente isso: uma presença tentando descobrir se ainda tem substância.
E se o maior susto for perceber que você mesmo se abandonou?
Obscula não te mostra o monstro. Ele te mostra a possibilidade do monstro. E a parte mais cruel: ele te mostra que talvez o monstro nem exista, mas que você se comporta como se existisse. E talvez, só talvez, você queira que ele exista. Porque aí, pelo menos, o medo faria sentido.
Esse tipo de terror é raro. Não é medo de morrer. É medo de nunca ter vivido de verdade.
Filosofia de corredor escuro
Sabe aquele momento em que você está parado diante de uma porta trancada, ouvindo algo arranhar do outro lado, e o jogo não te obriga a abrir? Ele só… te deixa ali. Decidindo. Obscula é feito de momentos assim.
Ele não te empurra. Ele te observa. E quando você vai, é por sua conta. Isso faz cada ação ser mais íntima, mais desconcertante. Você não está jogando. Está se expondo.
Críticas? Sim, mas até elas servem ao propósito
A estrutura do jogo é minimalista. Alguns vão reclamar que falta direção, que os puzzles não são claros, que há momentos de “andar sem saber pra onde ir”. Mas, francamente? Essa sensação é o ponto.
Obscula não quer te dar mapa. Quer que você se perca — e que, ao se perder, encontre alguma coisa em si. Mesmo que o que você encontre seja desconfortável, feio, ou absolutamente humano.
Humor? Só se for o da consciência que ri de nervoso
Você não vai achar piadas no jogo. Mas vai rir — de si mesmo. Porque vai passar cinco minutos decidindo se entra ou não numa sala só porque ouviu um chiado. Vai pular com o barulho de uma porta fechando atrás de você, mesmo sabendo que é script. Vai gritar quando vir um vulto, só pra perceber que era seu próprio reflexo.
E o jogo, silenciosamente, vai rir junto.
Prós e Contras
Prós:
- Atmosfera opressora e imersiva: o jogo acerta em cheio na ambientação, fazendo você sentir cada rangido, sombra e suspiro. É como morar temporariamente dentro de um poema gótico escrito por alguém com insônia.
- Terror psicológico de verdade: nada de sustos gratuitos — aqui o medo é construído com cuidado, e às vezes você sente medo só porque… o silêncio ficou tempo demais no ar.
- Narrativa interpretativa e simbólica: você preenche os vazios com o que carrega dentro. E, olha… isso é mais assustador do que qualquer monstro digital.
- Estética propositalmente desconfortável: gráficos estilo PSX meio sujos e distorcidos, que funcionam perfeitamente pra proposta e te deixam com aquela sensação de estar preso num pesadelo retrô.
- Trilha e design sonoro sensacionais: sons que escorregam pelas paredes e vozes que parecem sussurrar de dentro da sua cabeça. Tudo no volume certo pra te deixar desconfiado do ambiente (e da sua sanidade).
- Experiência curta e intensa: dura o tempo exato pra te marcar sem virar tortura. Ideal pra uma noite de imersão com fone e luz apagada (ou acesa, sem julgamentos).
- Preço honesto pra proposta: é um indie que não tenta parecer triplo A. Ele sabe quem é, e entrega isso com dignidade.
Contras:
- Falta de objetivos claros pode desorientar: se você precisa de marcador de missão e bússola com GPS, talvez se sinta abandonado no escuro (mas… né, esse é o ponto).
- Algumas interações são pouco intuitivas: tem item que parece inútil até ativar um evento que você nem sabia que existia. Um tutorial mínimo cairia bem.
- História propositalmente vaga: pra quem gosta de narrativa bem amarradinha com início, meio e fim, vai parecer que o jogo “não contou nada”. Mas talvez seja só você que não quis escutar.
- Ritmo muito lento pra quem espera susto constante: aqui o terror vem em ondas de angústia, não em picos de adrenalina. E isso pode cansar jogadores mais imediatistas.
- Pode incomodar quem tem sensibilidade a sons extremos e visuais distorcidos: se você tem labirintite ou pânico de ruído agudo do nada… cuidado.
Nota Final: 7/10
Jogar Obscula é como acender uma vela em um quarto escuro e decidir que você está pronto pra ouvir o que o escuro tem a dizer. É uma experiência íntima, dolorosa e às vezes belamente insuportável. É sobre terror, sim — mas também sobre saudade, silêncio e o som que faz quando a alma racha. É o tipo de jogo que te acompanha depois que você fecha. Que entra no banho com você. Que sussurra enquanto você escova os dentes. Se você está cansado de monstros de CGI e quer um horror que pega pelas beiradas e puxa sua sanidade com delicadeza, Obscula é a pedida. Mas não diga que eu não avisei: não é pra quem busca respostas. É pra quem aceita as perguntas.
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