Análise | Two Falls: Nishu Takuatshina – quando andar devagar é a única forma digna de se perder (versão PS5)
Alguns jogos são como filmes de ação dirigidos por adolescentes com acesso ilimitado a cafeína e Unreal Engine. Outros são como sonetos, delicadamente compostos por mãos calejadas, que falam mais de alma do que de espada.
Two Falls é o segundo tipo. E se você está procurando explosões, tiro, porrada e bomba… já pode ir jogando aquele Call of Whatever 23. Aqui, o que explode é a sua percepção. E o que você mata — com sorte — é a sua ignorância.
Esse jogo da Unreliable Narrators já chega com nome honesto, né? Se até o narrador é duvidoso, imagina o resto. Mas olha: poucas vezes a gente viu um “walking simulator” com tanto cuidado, respeito e camadas de sentido. Tem mais filosofia nesse jogo do que em muito perfil do Instagram com frase de Clarice Lispector mal atribuída.
Quem somos quando estamos perdidos?
Two Falls começa com Jeanne, uma jovem francesa que sobrevive a um naufrágio e vai parar no meio de uma floresta canadense em pleno século XVII. Nada muito diferente do que acontece quando a gente pega ônibus errado no centro e acaba em um bairro que não aparece nem no Google Maps. Mas Jeanne é do tipo que guarda a compostura. Ela não berra nem saca uma espada — ela observa. E sofre. E tenta entender.
Do outro lado temos Maïkan, um caçador indígena Innu que vive ali. A floresta, pra ele, é casa, é corpo, é memória. Mas até esse lar começa a parecer estranho quando vozes estranhas invadem e os sinais da natureza ficam… esquisitos. O que temos, então, são dois personagens vivendo a mesma terra com olhos completamente diferentes. Um vê ameaça. O outro, ruptura.
E o jogador? Ah, o jogador vê os dois. E entende que, muitas vezes, o problema não é o mundo — é o filtro.
Andar, observar e não pular diálogo: um manifesto silencioso
Olha, se você é do time “não gosto de andar sem fazer nada”, talvez vá se entediar. Mas se você é como eu — uma alma velha presa num corpo gamer — vai amar cada passo. Porque Two Falls não tem pressa. Ele quer que você veja o musgo, ouça o vento, note a cor do céu. Quer que você perceba como Jeanne enxerga tudo escuro, pesado, como se a floresta fosse um labirinto sem saída. Enquanto Maïkan vê luz, textura, vida.
É o mesmo cenário. Mas são histórias diferentes. E aqui mora uma das grandes sacadas do jogo: a lente transforma o mundo. Um pequeno caminho pode ser trilha ou armadilha, dependendo de quem olha. Uma voz pode ser aviso ou benção. Um rosto pode ser inimigo ou irmão. Tudo depende da bagagem.
O colonialismo explicado em silêncio
A coisa mais poderosa de Two Falls é que ele não precisa te dar aula de história. Ele mostra. Em pequenos gestos, em objetos esquecidos, em tensões que não se nomeiam, mas doem. A colonização não é um vilão de bigode torcendo o cavanhaque. Ela é o desconforto de não saber se você pode confiar. É o peso do “esse lugar é meu, mas agora tem gente dizendo que é deles também”.
E o jogo não escolhe lado. Ele não simplifica. Porque a vida real também não tem vilão com barra de HP. Tem decisões. Tem medos. Tem heranças emocionais passadas como doenças de família.
Visual de aquarela com dor
Vamos falar da arte? Two Falls é bonito. Mas não aquele bonito clean da Ubisoft. É bonito feito caderno de viagem. O visual muda de acordo com quem você joga — o que, convenhamos, é genial. Jeanne vê a floresta meio desbotada, pesada, com árvores como torres. Maïkan vê cores, texturas, espiritualidade. É como se o jogo tivesse feito uma conta no Pinterest só pra cada um deles.
E os sons? Ahhh… o som do rio, dos pássaros, das vozes espirituais… tudo tão imersivo que dá vontade de sentar no chão do quarto e pedir desculpas à Terra por ter jogado papel de bala fora quando era criança.
Jogabilidade: o botão mais usado é o da alma
Não tem combate. Não tem parkour. O que tem é andar e escutar. Você lê, observa, interage. Mas se você prestar atenção de verdade, vai perceber que o que o jogo quer é te fazer sentir. Tem puzzles leves, interações com objetos, escolhas que moldam a narrativa. Mas o essencial é isso: caminhar por uma terra cheia de memória e tentar, mesmo que pela primeira vez, ouvir o que ela tem a dizer.
A gente vive num mundo em que jogo bom é jogo que te dá troféu, loot, conquista. Aqui o troféu é terminar e se sentir… desconfortavelmente mais consciente. E talvez até um pouco triste.
Comparações poéticas, porque sim
Se fosse pra comparar, Two Falls seria:
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O primo mais sensível de Firewatch, que trocou a torre por raízes e ficou mais sábio;
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O oposto conceitual de Far Cry, onde a floresta não é inimiga, é mãe cansada;
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O irmão esquecido de The First Tree, com menos raposas e mais identidade;
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E uma versão menos deprimente (mas igualmente simbólica) de This War of Mine.
E, claro, um café com bolo de fubá servido na mesma mesa de Never Alone, aquele jogo lindo que também respeita culturas indígenas, mas que agora ganhou companhia pra conversar.
O que Two Falls quer dizer pra você?
Que tudo depende do olhar. Que o mesmo rio pode ser casa ou abismo. Que a mesma árvore pode ser abrigo ou prisão. Que talvez a gente precise parar de falar e começar a ouvir mais — não só nos jogos, mas na vida.
O jogo ensina sobre presença. Sobre humildade. Sobre história contada não por vencedores, mas por quem resistiu. Ele te convida a desacelerar num mundo onde tudo é algoritmo e aceleração. Te pede pra escutar o que está fora, mas também o que pulsa por dentro.
E, sim, tem lugar pra piadinha também
Porque, vamos combinar: colocar o nome do estúdio de Unreliable Narrators (Narradores Não Confiáveis) já é uma meta-ironia que me faz querer abraçar quem teve a ideia. E o melhor? Eles são super confiáveis no que importa: fazer a gente pensar.
Ah, e se você, como eu, adora jogar de madrugada com a luz apagada, prepare-se pra se pegar com um chazinho do lado e perguntando pra si mesmo: “Será que eu tô entendendo tudo errado esse tempo todo?”
Spoiler: provavelmente sim. Mas tudo bem. Two Falls diz que dá pra aprender mesmo assim.
Pra quem é esse jogo?
Pra quem não tem pressa. Pra quem gosta de história contada com silêncio. Pra quem acredita que andar por uma floresta pode ser mais transformador que escalar uma torre. E pra quem entende que a gente só se entende mesmo quando escuta o outro.
Prós e Contras
Prós:
- Narrativa sensível e autêntica: Um roteiro que não se impõe, mas convida. Que não grita, mas ecoa. Que não quer te ensinar nada, mas te deixa aprender — se você quiser.
- Dois pontos de vista, mil interpretações: A mudança estética e emocional entre Jeanne e Maïkan não é só charmosa — é uma aula de empatia interativa.
- Respeito cultural que dá orgulho de jogar: A participação real de comunidades indígenas não é só uma “inclusão simbólica”. É presença, é representatividade com alma.
- Trilha sonora e sons que falam sem palavras: O áudio aqui é quase um personagem. Ele guia, assusta, emociona. E, às vezes, faz você parar e ouvir só por ouvir.
- Visual que parece pintura molhada de sentimento: As cores mudam com a perspectiva, e isso diz mais sobre o mundo do que qualquer linha de diálogo.
- Um ritmo próprio (e necessário): Em tempos de urgência, um jogo que pede calma é quase um ato de resistência.
- Escolhas que não são sobre certo ou errado: São sobre olhar pra dentro e se perguntar por que você escolheu isso. É o tipo de mecânica que te acompanha depois que o jogo acaba.
Contras:
- “Walking simulator” com ênfase no walking: Se você é do tipo que fica entediado se não tiver um chefe final pra bater, vai achar que nada acontece. Spoiler: acontece — mas é dentro de você.
- Alguns bugs e tropeços técnicos: Nada que quebre o jogo, mas às vezes a grama some, o personagem trava, e você se pergunta se era parte do plano ou só o Unity cansado.
- Falta de mapa ou direção pode deixar perdido quem já se sente assim na vida real: Mas talvez isso seja até temático… vai saber.
- História propositalmente vaga: Se você quer roteiro mastigado com final explicado em PowerPoint, vai sair com fome.
- Pouca rejogabilidade tradicional: As escolhas são lindas, mas não há finais alternativos escancarados ou conquistas que te façam voltar correndo. O replay aqui é emocional, não estatístico.
Nota Final: 7/10
Two Falls: Nishu Takuatshina não é um jogo. É um convite. Uma carta aberta. Um pedido de empatia travestido de experiência digital. Ele é sobre cair — sim — mas também sobre levantar, com um olhar um pouco mais gentil, um pouco mais atento. E se, ao final da jornada, você sentir que algo mudou… mesmo que não saiba exatamente o quê, pode sorrir. A terra ouviu. E você também.
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